Após intensas discussões, a Receita Federal do Brasil (RFB) promulgou a Instrução Normativa RFB nº 2.161/2023 em 29 de setembro de 2023, estabelecendo as novas regras de Preços de Transferência no Brasil.

Originada da Lei nº 14.596/2023, esta normativa alinha o Brasil às diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O foco principal é o controle dos preços em transações controladas internacionais que afetam a base de cálculo do IRPJ e CSLL de empresas brasileiras. A normativa engloba entidades descritas na Lei nº 9.430/1996 e contribuintes da IN RFB nº 1.700/2017, inclusive filiais e sucursais. 

As diretrizes da OCDE, conforme apresentadas no relatório “OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administration 2022”, são adotadas como referência, salvo quando estiverem em desacordo com a Lei nº 14.596/2023. Além disso, o princípio "arm’s length" é destacado, assegurando a paridade nas transações controladas com aquelas feitas entre entidades independentes, e quaisquer desvios resultarão em ajustes.

O que foi regulamentado?

1. Transação Controlada

A IN RFB nº 2.161/2023 trouxe expressamente as definições do que é uma "transação controlada", “série de transações” e arranjo”.  

Estão sujeitas as regras novas regras de Preços de Transferência as seguintes transações:

  • Transações com bens tangíveis ou intangíveis.
  • Prestação de serviços.
  • Contratos de compartilhamento de custos.
  • Reestruturações de negócios.
  • Operações financeiras.
  • Disposições ou transferências de ativos, como ações.
  • Vendas, empréstimos, licenciamentos, entre outros.

2. Partes relacionadas

A Instrução Normativa define quando duas partes são consideradas relacionadas. São consideradas assim quando uma delas pode ser influenciada pela outra de forma a estabelecer termos diferentes dos que seriam acordados entre partes não relacionadas. Existem diversas situações em que partes são consideradas relacionadas, incluindo situações onde:

  • Uma controla a outra.
  • Matriz e filiais.
  • Coligadas.
  • Entidades que compartilham um mesmo controlador.
  • Entidades em que os mesmos sócios ou acionistas detêm uma participação significativa.
  • Relações com conselheiros, diretores ou controladores.
  • E outras hipóteses mencionadas em lei.

A "entidade" pode ser qualquer pessoa ou arranjo, mesmo sem personalidade jurídica. E a autoridade fiscal pode determinar outras situações onde partes são consideradas relacionadas.
O texto esclarece também o que configura relação de controle. Uma entidade controla outra quando:

  • Detém direitos que lhe conferem poder nas deliberações.
  • Participa com mais de 50% do capital social.
  • Tem poder sobre a administração ou gerenciamento da outra.

Além disso, aborda a definição de entidades coligadas, que é quando uma entidade tem influência significativa sobre outra, mesmo sem controlá-la. É considerada influência significativa quando uma entidade possui 20% ou mais de participação na outra.

3. Aplicação do princípio Arm’s Length

Procedimentos:

I - Delineamento da transação controlada.

II - Análise de comparabilidade da transação controlada, conforme delineada.

4. Análises de comparabilidade

A análise de comparabilidade, conforme estabelecida na legislação, objetiva assegurar que os termos e condições de uma transação controlada estejam em conformidade com os estabelecidos entre partes não relacionadas em transações similares. Esta análise considera características econômicas relevantes, datas das transações, disponibilidade de informações, seleção do método apropriado, incertezas na precificação, efeitos de sinergia e outros elementos.

A análise segue etapas típicas: determinação do período de análise, verificação de comparáveis internos e externos, seleção do método mais adequado, identificação de potenciais comparáveis, ajustes de comparabilidade e interpretação dos dados coletados.

As comparáveis, sejam internos (transações onde uma das partes também faz parte da transação controlada) ou externos (transações entre partes independentes sem relação com a transação controlada), são usados conforme sua relevância e confiabilidade.

A legislação também destaca que certas transações não são consideradas comparáveis, como aquelas que não são realizadas no curso normal de negócios ou que têm o propósito de estabelecer uma transação comparável. Há uma ênfase na avaliação de transações combinadas, dados não transacionais, compensações intencionais e questões temporais.

Os efeitos de sinergias, sejam deliberados ou incidentais, devem ser contabilizados e, se apropriado, compensados entre as partes envolvidas. A legislação também fornece orientações sobre ajustes de comparabilidade, destacando a importância de garantir que as transações analisadas sejam verdadeiramente comparáveis. Específicos ajustes, como padrões contábeis e características de produtos, são mencionados como exemplos.

5. Dos métodos

Esta instrução normativa aborda a seleção e aplicação de métodos para determinar os preços de transferência em transações controladas. Seis métodos são delineados: Preço Independente Comparável (PIC), Preço de Revenda menos Lucro (PRL), Custo mais Lucro (MCL), Margem Líquida da Transação (MLT), Divisão do Lucro (MDL) e outros métodos alternativos. 

A escolha do método mais apropriado é baseada em sua capacidade de fornecer a determinação mais confiável dos termos que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em uma transação comparável. Cada método tem suas especificidades e cenários de aplicação.

Os métodos são os seguintes:

A escolha do método mais apropriado considera a natureza da transação; a disponibilidade de informações de transações comparáveis; e o grau de comparabilidade entre as transações.

Os critérios de comparabilidade são: características dos bens/serviços; termos contratuais; nível do mercado; data e hora das transações; e diferenças de preço nos mercados geográficos. Além disso, a aplicação dos métodos exige cuidadosa consideração das diferenças contábeis e dos critérios de rateio.

Quanto aos métodos alternativos, podem ser selecionados nas seguintes circunstâncias:

  • Se a metodologia alternativa proporcionar um resultado em linha com transações comparáveis entre partes não relacionadas.
  • Se os métodos tradicionais não forem adequados para a transação em questão ou não produzirem resultados confiáveis, e a metodologia alternativa for mais apropriada.

Características destes métodos alternativos:

a) Técnicas ou Modelos de Avaliação:

  • Envolve técnicas aceitas de avaliação econômica, em particular métodos baseados em renda.
  • O método do fluxo de caixa descontado é um exemplo e é frequentemente usado para valorar intangíveis difíceis de valorar ou participações societárias sem comparáveis claros.

b) Obrigações do Contribuinte:

O contribuinte que optar por métodos alternativos deve:

  • Justificar a escolha através de documentação de preços de transferência, demonstrando conformidade com as diretrizes acima.
  • Usar critérios de avaliação e premissas razoáveis e confiáveis, incluindo projeções financeiras, taxas de crescimento e desconto, vida útil e outros fatores usados na análise.
  • Detalhar na documentação de preços de transferência os critérios usados, premissas sobre riscos da técnica de avaliação escolhida e outros elementos relevantes para a análise.

Essencialmente, quando os métodos tradicionais de preços de transferência não são aplicáveis ou confiáveis, os contribuintes têm a opção de usar métodos alternativos, mas precisam justificar essa escolha e usar premissas e critérios confiáveis na avaliação.

6. Seleção da Parte Testada na Transação Controlada

A parte testada é selecionada com base na aplicabilidade mais apropriada do método e na disponibilidade de dados confiáveis de transações comparáveis entre partes não relacionadas.

7. Ajustes à base de cálculo e efeito em outros tributos

Nas transações controladas, determinados ajustes podem ser realizados para garantir que a base de cálculo dos tributos esteja alinhada com o que seria estabelecido entre partes não relacionadas.

  • Ajuste espontâneo: realizado pela empresa no Brasil ao calcular os tributos, visando alinhar os resultados àquilo que teria sido obtido seguindo os princípios estabelecidos.
  • Ajuste compensatório: efetuado pelas partes da transação controlada para ajustar o valor da transação, de modo a refletir o que teria sido obtido entre partes não relacionadas.
  • Ajuste primário: realizado pela autoridade fiscal para ajustar a base de cálculo dos tributos com base nos princípios estabelecidos.

Quando os termos e condições das transações controladas não seguem aqueles de transações entre partes não relacionadas, ajustes são feitos para refletir os termos adequados. A autoridade fiscal poderá efetuar o ajuste primário em caso de descumprimento. Certos ajustes para reduzir a base de cálculo ou aumentar o prejuízo fiscal são proibidos, a menos que se enquadrem em exceções específicas.

O ajuste compensatório possui diretrizes específicas, como a necessidade de refletir o ajuste na escrituração contábil e a emissão de notas de débito ou crédito. A realização desse ajuste não requer autorização prévia, mas pode ser posteriormente verificado.

Por fim, os ajustes feitos não implicam, automaticamente, alterações na base de cálculo de outros tributos.

8. Medidas de simplificação

A RFB poderá estabelecer regras para simplificar e orientar a aplicação dos princípios de transações controladas. Em determinados casos, pode ser permitida uma abordagem simplificada, especialmente em transações que envolvem serviços de baixo valor agregado.

Regramentos Específicos da RFB:

  • Simplificar a análise de comparabilidade.
  • Orientar transações específicas, como acordos de gestão de tesouraria.
  • Estabelecer tratamento quando há informações limitadas sobre transações controladas.

9. Da documentação

O texto da Instrução Normativa detalha as obrigações documentais e os requisitos necessários que os contribuintes devem seguir em relação às suas transações sujeitas ao controle de preços de transferência. Em resumo, os contribuintes devem apresentar documentação e informações demonstrando a conformidade das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL relativas a tais transações.

Há três tipos principais de documentos:

  • Declaração País-a-País: Informações sobre alocação global de receitas, ativos e impostos.
  • Arquivo Global (Master File): Detalhes sobre a estrutura e atividades do grupo multinacional.

Deve ser elaborado para fornecer informações relativas à estrutura e às atividades do grupo multinacional a que o contribuinte pertence e às demais entidades integrantes desse grupo.

Será dispensado se o valor total das transações controladas do contribuinte, antes dos ajustes de preços de transferência, no ano-calendário anterior for menor que R$ 15.000.000,00.

Deve conter informações específicas como:

  • Organograma do grupo multinacional.
  • Descrição geral das atividades do grupo.
  • Informações sobre os intangíveis do grupo.
  • Informações sobre operações financeiras do grupo.
  • Listagem e descrição dos acordos prévios sobre preços de transferência.
  • Demonstrações contábeis consolidadas mais recentes do grupo.

Se redigido em língua estrangeira, deve ser acompanhado de uma tradução simples para a língua portuguesa, com exceções para documentos em inglês ou espanhol.

  • Arquivo Local (Local File): Informações sobre transações controladas e partes envolvidas.

Deve ser elaborado se o valor total das transações controladas do contribuinte, antes dos ajustes de preços de transferência, no ano-calendário anterior:

  • For maior ou igual a R$ 500.000.000,00 (baseado nos arts. 59 e 60).
  • For maior ou igual a R$ 15.000.000,00 e menor que R$ 500.000.000,00.

Será dispensado se o valor total das transações controladas do contribuinte, antes dos ajustes de preços de transferência, no ano-calendário anterior for menor que R$ 15.000.000,00.

Deve considerar transações controladas específicas, como:

  • Importação e exportação de bens e serviços (80% do valor total).
  • Transações com commodities.
  • Direitos, reestruturação de negócios, compartilhamento de custos, operações financeiras e transações envolvendo intangíveis.

Deve ser apresentado de forma digital através do e-CAC da RFB em até 3 meses após o prazo assinalado para transmissão da ECF do ano-calendário correspondente. O mesmo procedimento deve ser aplicado ao Arquivo Global.

10. Das Multas

Caso o contribuinte não forneça informações adequadas sobre transações controladas, a autoridade fiscal pode alocar funções, riscos e ativos à entidade brasileira e também usar estimativas para delinear a transação. Se o contribuinte não cumprir certos requisitos relacionados aos Arquivos Global e Local, ele está sujeito as seguintes multas:

11. Da Opção antecipada para 2023

Os contribuintes podem optar por aplicar os artigos 1º a 44 da Lei nº 14.596/2023 antecipadamente para 2023.

  • Formalização da opção (de 1º de setembro a 31 de dezembro de 2023):
    • Abertura de processo digital pelo Portal e-CAC.
    • Anexação do termo de opção do Anexo VI.
  • Em caso de extinção da entidade jurídica:
    • A opção deve ser feita no mês da extinção.
  • Consequências da opção:
    • A decisão é definitiva.
    • Obrigação de seguir os artigos 1º a 44 a partir de 1º de janeiro de 2023.
    • Considerar os efeitos do art. 46 da Lei nº 14.596 de 2023.
    • Contribuintes não obrigados a seguir regras de preços de transferência para IRPJ e CSLL:
    • Podem aplicar o art. 78 para 2023 se optarem conforme o art. 69.

12. Aplicação mandatória das novas Regras

A nova legislação de Preços de Transferência deverá ser implementada:

  • 1º de janeiro de 2023 para optantes.
  • 1º de janeiro de 2024 para não optantes.
  • Será aplicável mesmo para contratos/operações de períodos anteriores.

Há destaque para não dedutibilidade em certas circunstâncias de pagamentos, tais como royalties e assistência técnica a partes relacionadas.

13. Anexos

O texto da Instrução Normativa fornece uma lista de anexos relacionados a tópicos específicos em transações financeiras e fiscais. Esses anexos abordam temas como transações indiretas, ajustes de comparabilidade considerando riscos específicos de um país, utilização de dados de múltiplos anos, ajuste por netback, o uso de mediana e intervalo interquartil, e um termo de opção.

  • ANEXO I: Trata das Transações Indiretas e Série de Transações.
  • ANEXO II: Aborda o Ajuste de Comparabilidade pelo Risco-País.
  • ANEXO III: Foca em Dados de Múltiplos Anos – MLT.
  • ANEXO IV: Detalha o Ajuste por Netback.
  • ANEXO V: Descreve o uso da Mediana e Intervalo Interquartil em análises.
  • ANEXO VI: Fornece um Termo de Opção.

O que ainda depende de regulamentação?

Diversas operações relacionadas a Preços de Transferência, conforme estabelecido na Lei nº 14.596/2023, ainda estão pendentes de regulamentação. Estas incluem:

  • Transações com commodities.
  • Transações com intangíveis,
  • Serviços intragrupo
  • Compartilhamentos de custos.
  • Reorganização Societária.
  • Operações financeiras.
  • Processo de consulta específico em matéria de preços de transferência (“APA”).

A adoção das recentes regras de preços de transferência no cenário tributário representa uma transformação significativa, cujos impactos podem ser profundos para os contribuintes. Neste contexto, é imperativo que as empresas se antecipem, avaliando proativamente como essas mudanças podem afetar seus modelos de negócio. Assim, a realização de um diagnóstico de preços de transferência não só evidencia uma postura pró-ativa, mas também auxilia na identificação de potenciais vulnerabilidades e oportunidades no novo ambiente regulatório.

Com essa análise em mãos, os contribuintes estarão melhores preparados para estruturar suas políticas de preços de forma alinhada aos novos princípios, otimizando a conformidade fiscal e evitando possíveis contingências. Esta é uma etapa crucial para garantir uma transição suave e, ao mesmo tempo, explorar benefícios potenciais sob o novo regime.

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Autores

  • Autores

    David Benevides

    Sócio líder de Tributos da Grant Thornton Brasil

  • Autores

    Daniel Souza

    Sócio de Tributos Diretos da Grant Thornton Brasil

  • Autores

    Josdemar Beni

    Sócio de Preços de Transferência da Grant Thornton Brasil